terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Natal na Comenda de Rossas

Enquanto o Capitão-Mór faz uma pequena paragem junto à Fonte dos Cavalos, para levar o Roço a beber, e aproveita para depenicar um esquecido carrapiço de uvas, um dos seus rapazes prende ali o seu garrano e faz um pequeno desvio ao Lagar da Vinha apanhar duas canadas de azeite para, logo mais, alimentar as candeias da igreja durante a Missa do Galo e, entretanto, iluminar a ceia e temperar as pencas acabadas de chegar de Cimo de Vila e o bacalhau que lhe mandara o Comendador de Leça do Balio, que há-de ser acompanhado com dois almudes de Vinho do Porto que lhe enviara o mesmo Comendador. Para o fim da ceia mandou a Abadessa do Convento uma cesta de castanhas doces, outra de figos secos e duas broas de pão doce.
Entretanto, à semelhança do que acontecera de manhã junto à Capela da Senhora do Campo; nas imediações da Comenda ainda se nota alguma azáfama em redor dos cestos e jigos preparados para os mais necessitados. O Comendador mandou oferecer a cada um dos pobres indicados pelo Reverendo Abade: 1/2 afuzal de linho, ¼ de uma canada de vinho e medida igual de uma talha de azeite, meio alqueire de castanhas e nozes, meia galinha e dois ovos, um pedaço de presunto, uma chouriça, uma broa de milho e, atendendo às intempéries sucedidas no presente ano, ordenou fossem devolvidos os foros que já foram pagos e se não aceitassem os que por tradição se entregam nesta altura do ano.
Enquanto isso, os rapazes da Cavada descarregam no adro da igreja as raízes de oliveira trazidas da Bouça Vedra, que, logo mais, hão-de iluminar e aquecer a noite da rapaziada nova…
Dentro da igreja, renovada pelas obras mandadas fazer pelo Comendador, as raparigas cobrem a mesa e os altares com linhos a estrear, oferecidos pelo Morgado de Terçoso, e enfeitam os altares com o azevinho e ramas de pinheiro manso que os rapazes da montaria lhe trouxeram dos cotos da Senhora da Lage. A igreja está bonita. Pela primeira vez vão poder ser observados os painéis que o Comendador encomendou ao artista que andara a fazer os do Convento da vila, propositadamente para esta quadra. A discussão faz-se em torno do mais belo. Dentre a Anunciação, Circuncisão, Nascimento de Jesus ou Adoração dos Pastores, parece ser este último a recolher o maior agrado. Mas, todos os outros são igualmente belos! As suas cores vivas e brilhantes, iluminadas pelas candeias de azeite, emprestam outro colorido e alegria ao templo. Depois de um ano fustigado por intempéries, que tantas preces a Nossa Senhora do Campo justificaram, é preciso animar a alma do povo!
Para logo mais, e porque a noite da rapaziada promete ser longa, o Sargento-mór da Felgueira já prometeu levar meio barril de jeropiga e um pipo de aguardente. O Monteiro-mór prometeu os habituais dois maiores presuntos de javali da última montaria realizada e um quarteirão das maiores trutas que se consigam tirar do Urtigosa. A Miquinhas da Comenda arranja dois aventais de figos secos. O intento é de passar a noite em claro para, ao cantar do primeiro galo, alvorar, com o sino da igreja a repique, cantando e anunciando o nascimento do Menino.
Por esta hora, e antes de rumarem à igreja para a missa matinal, devem as mulheres ascender os fornos das casas em que os houver, para que em toda a Comenda se coma assado no dia de Natal. Por sua vez, os homens das casas mais abastadas devem tirar das salgadeiras as orelheiras, focinhos e couratos para leiloar no fim da missa, a reverter para os doentes e órfãos da freguesia.
Tudo para que a quadra motive o espírito solidário suficiente para compensar as perdas agrícolas, atenuar as enfermidades e satisfazer as mais prementes necessidades do povo desta Comenda de Rossas. Que haja alegria entre a rapaziada nova e, principalmente, entre a pequenada, para que vingue ao frio e à tristeza do Inverno e desperte com força na Primavera do ano que bate à porta.
Bom Natal e Feliz Ano Novo!
.
Nota: Só o painel é verídico e esteve na Igreja Paroquial de Rossas, desde o século XVII até meados do século passado. A última vez que o vi, em 2006, estava numa arrecadação do Museu de Arqueologia e Arte Sacra do Seminário Maior do Porto. Rossas, 20 de Dez. 2008.

1 comentário:

sara disse...

Obrigada por esta partilha! Gostei muito de ler. Ah e gostei também da ideia dos "dois almudes de vinho do Porto"!! Manda vir!! : ) hehehe
Beijinhos e Feliz Natal para ti e para os teus!