quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O bucólico e pitoresco lugar da Cavada, de Rossas

O bucólico e pitoresco lugar da Cavada, de Rossas, antiga comenda da Ordem do Hospital de S. João de Jerusalém, de Rodes e de Malta, cuja igreja matriz e antiga Casa dos Comendadores se situa ali um pouco mais abaixo, é ainda um verdadeiro refúgio para quem nele pretenda descansar da azáfama dos meios urbanos. Outrora foi mesmo este lugar um refúgio para quem andasse foragido às justiças do Reino ou pretendesse beneficiar dos privilégios da antiga Ordem Religiosa e Militar que ali se estabeleceu desde os primórdios da Nacionalidade, por concessão dos nossos primeiros Reis.
Ali, no lugar da Cavada, erigiu aquela Ordem a sua primeira Casa, com seus lagares e palheiros, onde se recolhiam os proventos das terras «cavadas» e tributos dos caseiros privilegiados.
Por ser um lugar tão sossegado, um dos Comendadores resolveu mesmo mudar a Casa da Comenda para junto da igreja e deixar a Casa do lugar aos seus descendentes, onde estes continuaram sua descendência, de que muitos ocuparam posições e cargos de destaque nas Ordenanças e Milícias locais, somando estórias quase lendárias, que ali tiveram seu palco e cenário.
Rodeado da floresta verdejante que de fronte sobe às cumeadas da serra da Freita, e se pode percorrer pelo caminho pedestre do vale do Urtigosa, por onde se podem avistar coelhos, lebres, e até javalis, é quase idílica a ambiência que ali se sente, ao som da melodiosa azáfama da passarada autóctone, que saltita de ramo em ramo, por entre macieiras, figueiras, nogueiras, milheirais e parreiras, que emolduram os campos e socalcos que contornam o rio do Urtigosa, onde outrora apenas o Comendador podia pescar as suas trutas.
Percorrer as vielas e caminhos do lugar e deste até à igreja, é presenciar e sentir ainda muitas das atividades em torno dos campos, da agricultura e atividades complementares. O toque do sino da igreja ainda dita o tempo de trabalho nos campos, período em que é fácil encontrar pessoas locais na sua labuta diária e experimentar o partir da bandeira nos milheiras, a colheita das espigas e as desfolhadas; a tira e apanha das batatas, a colheita das hortícolas e a apanha e pisa das uvas, sentir e deliciar-se com o vinho novo à bica dos lagares, bem como o estrumar dos campos e lavrar da terra para as sementeiras.
Enfim, um lugar rústico e encantado e, consta-se, outrora de belas raparigas. Tão belas que o último Capitão das Ordenanças locais, então residente na Casa da Comenda, sentindo abeirar-se a sua última hora, desejou e pediu para que fosse sepultado no adro da igreja, à soleira da porta lateral, para que pudesse ficar a ver as pernas às raparigas do lugar da Cavada. Vontade que se cumpriu.
Assim é! Mas, por mais que se conte e descreva, nada como experimentar e sentir.

domingo, 7 de agosto de 2016

O Rego do Correlos e os Viscondes de Alpendurada

«Olha o meu amigo!... Doutor! Está bom!? Veio de fim-de-semana ou de férias?» – Tudo bem, obrigado. Também por cá? Tire lá o doutor… Vim apenas de fim-de-semana e aproveitar para passear este meliante [o Pastor]. – «Ah muito bem!... Também é preciso! Olhe, nem de propósito e mais oportuno, pode elucidar-me sobre uma questão?» - Claro que sim, diga lá?
Foi desta forma que me chegou mais um caso de águas. É desta forma que os casos nos chegam na aldeia! Num misto de formalidade e informalidade.
O cliente, um novo velho amigo, já nascido na cidade mas com ascendência gerada e criada na aldeia, - na nossa aldeia -, vem recuperando, aos poucos, as propriedades que lhe ficaram por herança de seus pais. Recuperar um direito a águas do Correlos, era então também um objectivo. Não necessariamente para regar batatais e/ou milheirais, porque já não os há nas propriedades da familia, mas para que esse direito, que mais do que das pessoas é das propriedades, se recupere e as águas possam correr pelos campos, avivando regos e levadas, enchendo as presas e, enfim, possa brotar de forma permanente no tanque de ao pé da porta. A água é o sangue da terra e onde ela corre há sempre vida. Mais do que legítimo, portanto. Tanto mais quando, segundo começou por invocar este meu amigo, é imemorial o direito à água do Correlos.
Antes de mais, o Rego do Correlos é o regadio mais extenso da freguesia de Rossas, derivado do rio Urtigosa, já nas imediações do lugar de Lourosa de Matos da vizinha freguesia de Urrô, percorrendo uma extensão de aproximadamente 3Km pela encosta Norte da freguesia até ao lugar das Senras, de Nascente para Poente, da freguesia e do rio Urtigosa, que nasce lá um pouco mais acima da derivação da levada, nas imediações do lugar da Portelada, e desagua ali um pouco mais abaixo do último talhadoiro do rego, no lugar da Foz, onde o Urtigosa se doa ao Arda. No anos oitenta do século passado contava mais de setenta consortes e na década seguinte ultrapassava já os oitenta e cinco. Todos beneficiários de uma levada que, depois de encanada, leva em média meia cana de 50 cm de diâmetro.
O objectivo era então, numa primeira fase, o de averiguar da existência do direito a água do Correlos, se ainda existiria ou se se haveria perdido de alguma forma, pois nos papéis da Casa não apareceu qualquer documento de venda, doação ou renúncia a tal direito. Numa segunda fase, se possível, tratar da recuperação do direito, de preferência, nos termos e condições doutrora.
Um caso a meu gosto, como está de bom de ver. Com Direito e História. Se há ramo do direito que requer socorrer-se da história, é o dos Direitos Reais, também outrora dito das Coisas. Uma das minhas cadeiras preferidas na Faculdade e uma das áreas da minha preferência no exercício da actividade.
Adiante-se desde já que se conseguiu confirmar a existência do direito e a recuperação do mesmo, nos termos e condições doutrora, inerentes à propriedade dos prédios, vulgarmente referidos como, por exemplo, «o campo de ao pé da porta…, com água de rega do Correles…». É o que importa dizer quanto à causa e até quanto ao Direito.
Aqui, aquilo a que quero reportar-me - sem esgotar o assunto, mais desenvolvido em "Rossas - a Terra e o Povo" - diz respeito ao imemorial, às tradições, à organização comunitária, à palavra, bem como às estórias que se podem contar e à história que se pode fazer.
E, com efeito, são deliciosas as estórias em torno do rego do Correlos, bem como interessante a história que se pode fazer a propósito do mesmo. O que tudo muito contribuiu para sustentar e fundamentar o direito que nos pôs no terreno, monte acima e beira do rego adiante.
Para tratar de um assunto desta natureza, de um direito aparentemente perdido pela falta de exercício, é necessário, desde logo, aferir quem se serve do referido regadio nas imediações dos prédios outrora beneficiários, tentando perceber se existe ainda memória desses direitos terem correlação com estes outros. O que se percebe pela organização do giro, em que, normalmente, o consorte com prédios beneficiários mais a jusante vai cortar a água ao consorte imediatamente a montante, quando não partilham mesmo o rego, por talhadoiro dividido em partes iguais. Só depois de investigados estes factos e juntada alguma prova, testemunhal se possível, se deve confrontar os responsáveis da Junta de Regantes com uma factualidade fundamentada, comprovada ou a comprovar. Tanto mais que a esta caberá a decisão e eventual reorganização do giro.
O imemorial serve para sustentar e defender direitos existentes e não para recuperar direitos eventualmente perdidos pelo não exercício. De resto, dizem-nos os antiquíssimos brocardos que o Direito não socorre os que dormem, Dormientibus non sucurrit ius; e o fruto sem uso não se pode haver, Fructus sine usu esse non potest.
E com duas latinadas destas, arrumava a questão em desfavor do cliente. Mas o que se pretendia, como é óbvio, era exactamente o contrário: afastar a aplicabilidade liminar de tais expressões sentenciadoras. O que se conseguiu. Tanto mais que, tal como diz outro brocardo não menos antigo: qui iure suo utitur, neminem laedit, quem usa o seu direito, não prejudica ninguém.
Foi fácil descobrir onde parava o direito. Vários e diferentes direitos, até. De vários prédios. Caseiros antigos, entretanto feitos proprietários de pequenas parcelas doutrora grandes propriedades, foram ficando com as quantidades e horas d’água de seus Senhores doutrora.
Nas investigações entretanto realizadas, apareceram uns documentos, datados de 1858, de uma acção encabeçada pelos Viscondes de Alpendurada contra um casal de Santa Maria do Monte, para defesa do direito imemorial de se aproveitarem da água chamada do rego do Correlos. O que se nos afigurou como muito curioso e interessante. Os Viscondes de Alpendurada a reivindicar o direito à água do rego do Correlos!? Estes preciosos documentos permitiram restaurar os direitos na sua plenitude.
Satisfeita a questão de Direito, não resistimos à tentação de aprofundar a questão sob o ponto de vista histórico.
Não conseguimos, no entanto, saber quando terá sido rasgado o rego do Correlos. É imemorial. O que quer dizer de um tempo tão antigo que o seu início se perdeu da memória dos vivos. Sumiram-se também os documentos da sua criação, constituição e história.
Já os Viscondes de Alpendurada entraram em posse de propriedades em Rossas, pela compra que delas fizeram a Bernardino Portugal da Graça que as havia adquirido a Maria Antónia Leite Pereira Melo Virgolino, herdeira universal de seu filho único, António Virgolino Saraiva Mendes de Vasconcelos Cirne, também este herdeiro universal de seu avô Teotónio Mendes de Vasconcelos e Cirne. Sim, exactamente, os do Morgadio de Terçoso, Senhores do escravo que abriu o Rego do Preto, do ribeiro da Escaiba à Quinta de Terçoso. Quiçá, muito provavelmente, rasgado na mesma altura do rego do Correlos.
Os Viscondes de Alpendurada não só entraram então na posse dos bens que outrora constituíram o Morgado de Terçoso, como, através do seu procurador José Francisco de Oliveira, entretanto residente na Casa do Corregato, exerceram essa posse e defenderam os direitos inerentes aos mesmos, como foi o caso da acção intentada contra o casal de Santa Maria do Monte, para defesa do direito imemorial de se aproveitarem da água chamada do rego do Correlos, regadio que atravessa a encosta soalheira e oposta à Casa e Quinta de Terçoso, servindo, entre outras propriedades, a Casa e Quinta do Corregato.
Pouco tempo depois da passagem das propriedades ao Visconde de Alpendurada, e aquando da arrematação dos bens que tinham pertencido ao Mosteiro de Arouca, foram oferecidos os bens do Morgado de Terçoso a José Gaspar da Graça, herdeiro do Conde de Ferreira, comerciante no Porto, que adquiriu aqueles e estes, transformando-se num dos maiores proprietários de Arouca. Bens que por fim, foram administrados e sucessivamente vendidos por Henrique da Graça de Oliveira Monteiro de Barros Gomes.
Quanto ao mais, a água de regadio é um bem preciosíssimo, mormente de Março a Setembro, meses em que se deve cumprir o giro. A terra é de rios, mas o relevo é acidentado, sendo muitos os campos que se estendem até meia encosta. Um bem tão precioso, que já serviu mesmo de promessa de liberdade a escravos e já motivou muitos conflitos e litígios, cabeças abertas à enxadada, trocas de tiros, esperas, ajustes e mortes até.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Gratidão ao Pe. João Pedro Bizarro


Sendo já do conhecimento público que o Reverendo Pe. João Pedro Bizarro deixará Arouca no próximo mês de Setembro, não quero deixar passar esta oportunidade sem manifestar publicamente, e enquanto seu paroquiano, a minha gratidão pelo trabalho que desenvolveu nesta Vigararia na última década.
Antes de mais, lembrar que foi para paroquiar Rossas, Canelas e Espiunca, substituindo o Reverendo Pe. Alfredo Ferreira da Costa, também agora promovido de Perfeito a Reitor do Seminário Maior de Nossa Senhora da Conceição do Porto, que o Pe. João Pedro Bizarro veio para Arouca.
Superar ou pelo menos igualar o trabalho desenvolvido pelo Reverendo Pe. José da Rocha Ramos e a inteligência e afectuosidade do Pe. Alfredo Ferreira da Costa era, pois, a missão exigida pelas comunidades que então o receberam de braços abertos.
Era, pois, uma missão suficientemente exigente para o então novíssimo padre, que assim iniciava o seu múnus pastoral, alicerçado no serviço ao próximo, já experimentado como escuteiro e enfermeiro.
Assim aconteceu em 21 de Setembro de 2003, volvidos pouco mais de dois meses após a sua ordenação como padre. Em pouco mais de cinco anos, João Pedro, passou de enfermeiro a padre e da cidade à aldeia.
Nascido em Angola e de seu nome completo João Pedro de Serra Mendes Bizarro, veio para Portugal com seus pais, ainda não tinha completado dois anos de vida, fixando residência em Vila Nova de Gaia, onde cresceu e estudou. Tirou o Bacharelato em Enfermagem, que concluiu em 1995, e exerceu funções como enfermeiro no Hospital de Santo António, no Porto.
Ainda em 1997, e sem deixar de exercer aquelas funções, sentiu maior apelo vocacional para a vida religiosa, pelo que decidiu experimentar o Pré-Seminário Diocesano. Começou a frequentar a Licenciatura em Teologia e, em 1999, entrou para o Seminário Maior de Nossa Senhora da Conceição, no Porto, levando a que suspendesse as funções de enfermeiro e se dedicasse exclusivamente a esta sua maior vocação. Foi ordenando padre em 6 de Julho de 2003.
A contar 43 anos de vida e 13 de padre, sente ainda fervilhar-lhe o interesse pelo estudo teológico e aprofundamento do conhecimento da Igreja, nomeadamente, pelo Direito Canónico. De resto, tem tomado contacto com esta área enquanto Juiz do Tribunal Eclesiástico.
Sem nunca fazer grandes pergaminhos disso, enquanto esteve por Arouca, onde também cresceu e amadureceu enquanto homem e enquanto padre, fez-se também Pós-Graduado em Teologia Pastoral e Mestre em Teologia Sistemática, deixando perceber, pelo menos a quem com ele privava, a sua vontade em dar continuidade aos estudos.
Vai agora prosseguir os estudos de Direito Canónico, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Para trás, e em Arouca, deixa a sua marca enquanto pároco. Não se preocupou em superar ou sequer igualar quem quer que seja, e muito menos os párocos que o antecederam nas paróquias de Arouca. Fez por cumprir o seu múnus sacerdotal de acordo com a sua forma de ser e estar, dando relevância às vertentes de sua maior sensibilidade.
“Não leu os livros” de nenhum dos seus antecessores e preocupou-se em fazer o seu próprio caminho, em serviço do Povo de Deus, mas, também assim, como forma de aperfeiçoamento e enriquecimento pessoal enquanto jovem pároco. Anunciou a alegria do Evangelho de forma incansável e inovadora - quase informal até, nos diálogos que mantinha com os mais novos -, na celebração festiva da fé e no exercício criativo da caridade, também por meio das obras do escutismo e do voluntariado da Ordem de Malta, de que foi feito Capelão em 2012.
Deixa marcas em Rossas, Canelas, Espiunca, Santa Eulália, Arouca e Burgo, que paroquiou, bem como nas organizações ligadas à Igreja e não só, a que se dedicou nestes últimos anos. Enquanto Assistente do Núcleo Sul do Corpo Nacional de Escuteiros, lançou em Rossas a semente do escutismo em Arouca, hoje enraizado e com grande vitalidade, oferecendo aos jovens deste concelho uma alternativa de desenvolvimento da personalidade e serviço ao próximo.
Será agora rendido no seu posto de sentinela guardiã do Povo de Deus de Arouca pelo jovem Reverendo Pe. Luís Mário Araújo Ribeiro, que virá com a função de paroquiar S. Bartolomeu de Arouca, S. Salvador do Burgo, S. Miguel de Canelas e S. Martinho da Espiunca, bem como de administrar paroquialmente Nossa Senhora da Conceição de Rossas, S. Mamede de Cabreiros e Nossa Senhora da Assunção de Albergaria da Serra.