«Olha o meu amigo!...
Doutor! Está bom!? Veio de fim-de-semana ou de férias?» – Tudo bem, obrigado. Também
por cá? Tire lá o doutor… Vim apenas de fim-de-semana e aproveitar para passear
este meliante [o
Pastor]. – «Ah muito bem!... Também é preciso! Olhe, nem de propósito e mais
oportuno, pode elucidar-me sobre uma questão?» -
Claro que sim, diga lá?
Foi
desta forma que me chegou mais um caso de águas. É desta forma que os casos nos
chegam na aldeia! Num misto de formalidade e informalidade.
O
cliente, um novo velho amigo, já nascido na cidade mas com ascendência gerada e
criada na aldeia, - na nossa aldeia -, vem recuperando, aos poucos, as
propriedades que lhe ficaram por herança de seus pais. Recuperar um direito a
águas do Correlos, era então também um objectivo. Não necessariamente para
regar batatais e/ou milheirais, porque já não os há nas propriedades da
familia, mas para que esse direito, que mais do que das pessoas é das propriedades,
se recupere e as águas possam correr pelos campos, avivando regos e levadas,
enchendo as presas e, enfim, possa brotar de forma permanente no tanque de ao pé
da porta. A água é o sangue da terra e onde ela corre há sempre vida. Mais do
que legítimo, portanto. Tanto mais quando, segundo começou por invocar este meu amigo, é
imemorial o direito à água do Correlos.
Antes
de mais, o Rego do Correlos é o regadio mais extenso da freguesia de Rossas,
derivado do rio Urtigosa, já nas imediações do lugar de Lourosa de Matos da
vizinha freguesia de Urrô, percorrendo uma extensão de aproximadamente 3Km pela
encosta Norte da freguesia até ao lugar das Senras, de Nascente para Poente, da
freguesia e do rio Urtigosa, que nasce lá um pouco mais acima da derivação da
levada, nas imediações do lugar da Portelada, e desagua ali um pouco mais
abaixo do último talhadoiro do rego, no lugar da Foz, onde o Urtigosa se doa ao
Arda. No anos oitenta do século passado contava mais de setenta consortes e na
década seguinte ultrapassava já os oitenta e cinco. Todos beneficiários de uma
levada que, depois de encanada, leva em média meia cana de 50 cm de diâmetro.
O
objectivo era então, numa primeira fase, o de averiguar da existência do
direito a água do Correlos, se ainda existiria ou se se haveria perdido de
alguma forma, pois nos papéis da Casa não apareceu qualquer documento de venda,
doação ou renúncia a tal direito. Numa segunda fase, se possível, tratar da recuperação
do direito, de preferência, nos termos e condições doutrora.
Um
caso a meu gosto, como está de bom de ver. Com Direito e História. Se há ramo do direito que
requer socorrer-se da história, é o dos Direitos Reais, também outrora dito das
Coisas. Uma das minhas cadeiras preferidas na Faculdade e uma das áreas da
minha preferência no exercício da actividade.
Adiante-se
desde já que se conseguiu confirmar a existência do direito e a recuperação do
mesmo, nos termos e condições doutrora, inerentes à propriedade dos prédios,
vulgarmente referidos como, por exemplo, «o
campo de ao pé da porta…, com água de rega do Correles…». É o que
importa dizer quanto à causa e até quanto ao Direito.
Aqui,
aquilo a que quero reportar-me - sem esgotar o assunto, mais desenvolvido em "Rossas - a Terra e o Povo" - diz respeito ao imemorial, às tradições, à
organização comunitária, à palavra, bem como às estórias que se podem contar e
à história que se pode fazer.
E,
com efeito, são deliciosas as estórias em torno do rego do Correlos, bem como
interessante a história que se pode fazer a propósito do mesmo. O que tudo
muito contribuiu para sustentar e fundamentar o direito que nos pôs no terreno,
monte acima e beira do rego adiante.
Para
tratar de um assunto desta natureza, de um direito aparentemente perdido pela
falta de exercício, é necessário, desde logo, aferir quem se serve do referido
regadio nas imediações dos prédios outrora beneficiários, tentando perceber se
existe ainda memória desses direitos terem correlação com estes outros. O que
se percebe pela organização do giro, em que, normalmente, o consorte com
prédios beneficiários mais a jusante vai cortar a água ao consorte
imediatamente a montante, quando não partilham mesmo o rego, por talhadoiro
dividido em partes iguais. Só depois de investigados estes factos e juntada
alguma prova, testemunhal se possível, se deve confrontar os responsáveis da
Junta de Regantes com uma factualidade fundamentada, comprovada ou a comprovar.
Tanto mais que a esta caberá a decisão e eventual reorganização do giro.
O
imemorial serve para sustentar e defender direitos existentes e não para
recuperar direitos eventualmente perdidos pelo não exercício. De resto, dizem-nos os antiquíssimos brocardos que o Direito
não socorre os que dormem, Dormientibus non sucurrit ius; e o fruto sem uso não se pode haver, Fructus sine usu esse non potest.
E
com duas latinadas destas, arrumava a questão em desfavor do cliente. Mas o que se
pretendia, como é óbvio, era exactamente o contrário: afastar a aplicabilidade
liminar de tais expressões sentenciadoras. O que se conseguiu. Tanto mais que, tal como diz outro brocardo não menos antigo: qui iure suo utitur, neminem laedit, quem
usa o seu direito, não prejudica ninguém.
Foi
fácil descobrir onde parava o direito. Vários e diferentes direitos, até. De vários
prédios. Caseiros antigos, entretanto feitos proprietários de pequenas parcelas
doutrora grandes propriedades, foram ficando com as quantidades e horas d’água de
seus Senhores doutrora.
Nas
investigações entretanto realizadas, apareceram uns documentos, datados de 1858, de
uma acção encabeçada pelos Viscondes de Alpendurada contra um casal de Santa
Maria do Monte, para defesa do direito imemorial de se aproveitarem da água
chamada do rego do Correlos. O que se nos afigurou como muito curioso e
interessante. Os Viscondes de Alpendurada a reivindicar o direito à água do
rego do Correlos!? Estes preciosos documentos permitiram restaurar os direitos
na sua plenitude.
Satisfeita
a questão de Direito, não resistimos à tentação de aprofundar a questão sob o
ponto de vista histórico.
Não
conseguimos, no entanto, saber quando terá sido rasgado o rego do Correlos. É
imemorial. O que quer dizer de um tempo tão antigo que o seu início se perdeu
da memória dos vivos. Sumiram-se também os documentos da sua criação,
constituição e história.
Já
os Viscondes de Alpendurada entraram em posse de propriedades em Rossas, pela
compra que delas fizeram a Bernardino Portugal da Graça que as havia adquirido
a Maria Antónia Leite Pereira Melo Virgolino, herdeira universal
de seu filho único, António Virgolino Saraiva Mendes de Vasconcelos Cirne, também este herdeiro universal de seu
avô Teotónio Mendes de Vasconcelos e Cirne. Sim, exactamente, os do Morgadio de
Terçoso, Senhores do escravo que abriu o Rego do Preto, do ribeiro da Escaiba à
Quinta de Terçoso. Quiçá, muito provavelmente, rasgado na mesma altura do rego do Correlos.
Os Viscondes de Alpendurada não só entraram então
na posse dos bens que outrora constituíram o Morgado de Terçoso, como, através
do seu procurador José Francisco de Oliveira, entretanto residente na Casa do
Corregato, exerceram essa posse e defenderam os direitos inerentes aos mesmos,
como foi o caso da acção intentada contra o casal de Santa Maria do Monte,
para defesa do direito imemorial de se aproveitarem da água chamada do rego do
Correlos, regadio que atravessa a encosta soalheira e oposta à Casa e Quinta de
Terçoso, servindo, entre outras propriedades, a Casa e Quinta do Corregato.
Pouco tempo depois da passagem das propriedades ao
Visconde de Alpendurada, e aquando da arrematação dos bens que tinham
pertencido ao Mosteiro de Arouca, foram oferecidos os bens do Morgado de
Terçoso a José Gaspar da Graça, herdeiro do Conde de Ferreira, comerciante no
Porto, que adquiriu aqueles e estes, transformando-se num dos maiores
proprietários de Arouca. Bens que por fim, foram administrados e sucessivamente
vendidos por Henrique da Graça de Oliveira Monteiro de Barros Gomes.
Quanto
ao mais, a água de regadio é um bem preciosíssimo, mormente de Março a
Setembro, meses em que se deve cumprir o giro. A terra é de rios, mas o relevo
é acidentado, sendo muitos os campos que se estendem até meia encosta. Um bem
tão precioso, que já serviu mesmo de promessa de liberdade a escravos e já
motivou muitos conflitos e litígios, cabeças abertas à enxadada, trocas de
tiros, esperas, ajustes e mortes até.