domingo, 16 de abril de 2023

A propósito do culto e festa da Rainha Santa Mafalda

No ano passado completaram-se 230 anos sobre a beatificação da Rainha Santa Mafalda, confirmada por breve apostólico de 27 de Julho de 1792. No ano seguinte ao da beatificação, de 15 a 21 de Junho, depois de devidamente engalanado o Mosteiro, realizaram-se os majestosos festejos desse acontecimento, tendo por ponto alto a trasladação das relíquias da novel beata do túmulo de pedra em que repousavam para a imagem e urna relicário em que hoje se encontram.

Este acontecimento, embora decorrente do primeiro, não foi menos significativo que aquele, porquanto, tendo a beatificação demorado mais de cento cinquenta anos e ficado aquém do pretendido, os festejos e a colocação em exposição permanente e visível das relíquias ao nível das imagens dos demais Santos concretizava um desejo maior das religiosas e do povo que há muito haviam “canonizado” essa prodigiosa e virtuosa Senhora que escolheu o Mosteiro de Arouca para viver e nele ficar sepultado o seu sagrado corpo.

Com efeito, há muito que o povo ao título de Rainha lhe havia acrescentado o de Santa, tal era a tradição desta Senhora, em vida, ter praticado com devoção e religiosidade intensa todas as virtudes cristãs e, depois de morta, intercedido pela cura de múltiplas enfermidades e pela definição e resolução de diversas causas. Tudo tendo tomado contornos de maior verosimilhança e santidade a partir de 1616, quando algumas monjas procurando saber como estaria o corpo de Dona Mafalda abriram a sua urna e o acharam incorrupto e perfumado.

Daí em diante aumentou significativamente o seu culto, de tal forma que, em 1704, também a sua urna foi deslocada do local onde se encontrava desde que a mulinha ali havia trazido a tumba com o seu corpo, para altar provisório junto ao coro e, posteriormente, em 1718, para o altar onde se encontra atualmente.

Junto ao túmulo de pedra, que substituiu o primitivo de madeira, sobre o qual se fez repousar uma estátua jacente, sempre arderam lâmpadas de prata, durante todos os dias do ano, ali acorrendo diariamente as monjas e também imensos devotos, de ambos os sexos e todas as dignidades, manifestando culto público igual ao dos outros Santos.

Porquanto, levar a notícia e testemunho das graças desta Serva de Deus à Causa dos Santos e colocar as suas relíquias num túmulo e altar dignos da sua santidade, era o mínimo que se nos impunha perante o facto de uma predestinada aos palácios da realeza ter escolhido o nosso mosteiro para seu paço, ali estabelecer a sua fonte de graças celestes e dali subir aos Céus depois de nos confiar a guarda do seu corpo.

Porém, vistos estes últimos 230 anos, a beatificação foi (até hoje) o facto mais relevante da história da Rainha Santa Mafalda. E aquela sumptuosa comemoração acabou por ser o clímax da história do Mosteiro. Daí em diante, apesar da obra que se fez, este apenas conheceu o declínio do seu objeto e não mais se insistiu na canonização da sua bem-aventurada Benfeitora. Não mais se deu sequer testemunho e/ou tomou nota oficial dos milagres que eventualmente terá continuado a operar entre nós.

Estamos, pois, em falta para com a nossa Rainha Santa! A menos que se considere, consciente ou inconscientemente, que os milagres que operou entre nós aconteceram apenas em função e benefício do seu processo de santificação. Certamente que não. Não terá deixado a ditosa Senhora de obter para os seus devotos as graças que lhe rogam. E estas não serão hoje menores que naqueles outros tempos.

Disso mesmo nos deu testemunho ainda não há muitos anos o nosso conterrâneo Cónego Joaquim Mendes de Castro (1920-2016), em formato de livro – um pequeno grande livro que guardo entre os meus prediletos sobre a história e devoção de Santa Mafalda – e em cujas palavras de abertura relata a graça que ele próprio terá recebido por intercessão desta nossa e sua Santa protectora.

Os bem-aventurados não têm validade nem as graças divinas estão limitadas a qualquer stock. Mas dependem da perceção, testemunho, julgamento e divulgação dos fiéis, porquanto os santos só o são pelo reconhecimento dos outros.

Quanto à festa em sua honra, a autorização apostólica para veneração oficial da Rainha Santa decorreu daquele processo e, por isso, foi autorizada apenas no século XVII, depois da verificação e certificação da incorruptibilidade do seu corpo e das primeiras inquirições sobre o seu culto popular, pelo que só a partir de então terá começado a realizar-se também a sua festa, pelo aniversário do seu falecimento.

Mais antiga era já então a festa de São Bernardo, fundador de Cister, que tinha lugar no mês de Agosto, também a expensas do Mosteiro. Porém, depois de extintas as Ordens Religiosas e, nomeadamente, após o encerramento do cenóbio arouquense, a que também ajudou a proximidade das respetivas festas litúrgicas, a festa de São Bernardo foi substituída pela de São Bartolomeu. Associou-se-lhe depois uma componente em honra de Santa Mafalda e fizeram destas as popularmente designadas “Festas do Concelho”. A vertente profana destas acabou por prevalecer e, já em pleno século XX, acabaram por ser suplantadas pela Feira das Colheitas.

A festa da Rainha Santa, no entanto, resistiu à extinção do Mosteiro e aos intentos laicizantes. Quiseram mesmo os nossos maiores que o dia em que se assinala o falecimento de Dona Mafalda e em que continuou a realizar-se a sua festa prevalecesse sobre o dia em que os foreiros se viram livres dos pesados tributos ao Mosteiro, fazendo daquele também o dia do município e feriado municipal, o que muito beneficiou o seu culto e a sua festa, que ainda hoje se realiza e é bastante concorrida.

(publicado na edição do Roda Viva Jornal do mês de Abril)