domingo, 5 de novembro de 2023

A Sangria e o ofício de Barbeiro Sangrador

Este fim-de-semana consegui dedicar umas horitas aos meus "PINHOS", dos lugares de Rossas e da Leira, da freguesia de Rossas. Detive-me particularmente em torno do meu octavô Manuel de Pinho, que residiu no lugar de Rossas, junto à Casa da Comenda, em virtude do seu peculiar ofício de mestre barbeiro sangrador, talvez até mais sangrador do que barbeiro, dada a maior frequência com que aparece assim referido, nomeadamente, em vários testamentos que redigiu a pedido na primeira metade do século XVIII.

Talvez devido a esse seu ofício, Manuel de Pinho e sua mulher Maria Teixeira, foram ainda das relações e confiança do comendador de então, Frei D. António Manoel de Vilhena, o qual, de resto, num raro gesto de consideração, apadrinhou presencialmente uma das filhas daqueles, Eufrásia Teixeira de Pinho, batizada na matriz de Rossas, no dia 23 de Fevereiro de 1754.

Quanto ao peculiar ofício, que naquela altura não era assim tão peculiar nem incomum - já que, tal como parteiras, era frequente haver pelo menos um em cada freguesia -, até finais do século XVIII, os “médicos”, inspirados pelos desígnios da medicina antiga, emitiam diagnósticos e receitavam mezinhas, convictos que cada pessoa era fruto da combinação de porções variáveis de fogo, terra, água e ar. Defendiam também que a combinação destes quatro elementos no organismo, dava origem a quatro humores diferentes: o sangue (produzido pelo fígado), a bílis amarela (produzida pelo fígado), a fleuma (produzida pelo cérebro) e a atrabílis ou bílis negra (produzida pelo baço). Tal como as suas qualidades originais (o quente, o frio, o seco e o húmido), esses fluidos estavam submetidos a forças internas ou externas capazes de alterá-los (os pneumas). A origem das doenças era consequência do acumular desses líquidos orgânicos numa dada região do corpo. Todavia, defendiam que o organismo era portador de uma força restabelecedora que lhe era intrínseca, pelo que o próprio corpo procurava descartar-se naturalmente dos efeitos nocivos de qualquer desordem humoral, recorrendo às secreções. Deste modo, a fleuma (fria, húmida e transparente), era expulsa pelo nariz, nos resfriados; a bílis (amarela, quente e seca), era excretada pelo vómito, nas perturbações digestivas; a atrabílis (escura, fria e seca) era expulsa pelas fezes, nas afeções intestinais, enquanto o sangue (vermelho, quente e húmido), se libertava das feridas e acompanhava a expetoração das doenças pulmonares.

Por outras palavras, a saúde era o resultado de uma combinação humoral harmoniosa e a doença era consequência de uma rutura nesta estabilidade natural. Daí que o tratamento de qualquer doença, visasse neutralizar a ação dos humores putrefactos. Para tal, eram prescritos regimes alimentares e medicamentos com qualidades antagónicas às substâncias nocivas que dominavam o organismo, assim como a sangria, que permitia escoar os humores perniciosos que circulavam na área afetada. Práticas como a sangria e a aplicação de sanguessugas, eram correntes nessa época. Eram tarefas executadas por barbeiros, cumulativamente com o corte de cabelo, a feitura de barbas e a extração de dentes, dada a sua grande habilidade manual. Alguns barbeiros podiam até realizar cirurgias, eram os “cirurgiões barbeiros”.

A aprendizagem deste ofício processava-se por conhecimento oral e empírico. No entanto, onde existiam regulamentos para o exercício dos mesmos, era defendida a hierarquia entre os saberes de médicos, cirurgiões e barbeiros. Aos primeiros competia a prescrição e aos últimos a execução. Os barbeiros sangradores nunca deveriam sangrar sem ordem dos médicos, pois corriam o risco de provocar danos irreparáveis.

Os mais entendidos advogavam a sangria derivativa, realizada através de corte no local mais próximo da inflamação, para evitar que o humor doentio se espalhasse pelo corpo, caso a incisão fosse efetuada longe da região afetada, como faziam os partidários da sangria volumosa.

As funções de uma sangria eram múltiplas, a saber: Evacuação: expulsão de humores nocivos que agiam sobre determinado ponto do corpo; Diversão: enganar o fluxo sanguíneo e desviá-lo para o lado oposto, banindo derrames na parte lesada; Atração: levar o humor a uma parte específica, provocando a menstruação, por exemplo; Alteração: modificação da qualidade do humor maligno preponderante; Preservação: conservação dos humores sãos, acautelando uma moléstia; Aliviação: minorar dores ou abaixar a temperatura do corpo, no caso de febres.

O desempenho do mester de barbeiro sagrador exigia ainda determinado perfil: ser jovem para não lhe tremerem as mãos e ter boa vista. Ter experiência para saber distinguir uma veia de uma artéria, conhecendo quantas veias existem no corpo humano, o seu nome, distribuição e quais as sangráveis. Devia, de resto, estar bem provido de lancetas: instrumentos com lâmina curta.

Com efeito, a sangria exigia o conhecimento do confuso mapa do sistema venoso. Segundo os maiores entendidos, era possível sangrar 42 veias: dezoito na cabeça, doze nos braços e doze nos pés. Para combater catarros e doenças da cabeça, sangrava-se atrás das orelhas. Na testa para curar oftalmias. No canto dos olhos, para curar enfermidades na face, vermelhidão na vista ou cataratas. Debaixo da língua para livrar o paciente de dores de garganta. Sangrava-se também, dentro e fora do nariz e nos lábios, bem como nos braços, mãos, pernas e pés. Apenas as axilas eram poupadas. A sangria era usada como anestésico, anti-inflamatório, antifebril e abortivo. Através dela se combatia também, cefaleias, tumores e hemorragias.

A sangria deveria ser executada com o paciente deitado. Os instrumentos utilizados no corte variavam de acordo com o local a sangrar. Para uma remoção profunda eram usadas a lanceta e as sanguessugas. Já para humores superficiais, utilizava-se um recipiente de vidro, conhecido por ventosa e de tamanho variável. Recorria-se ainda a uma bacia para recolher o sangue e a pós restritivos para estancar este após o corte.

Depois de sangrado, o paciente ficava em repouso e não podia dormir durante a primeira hora, nem deitar-se sobre a zona do corte, devendo abster-se do consumo de alimentos indigestos, devendo seguir a dieta prescrita pelo médico.

Em 1628, o inglês William Harvey (1587-1657), comprovou a circulação sanguínea, lançando as bases para contestar o fundamento da sangria. Todavia, afamados médicos e cirurgiões portugueses, persistiam em encarar a sangria como uma rotina de tratamento, não só eficaz, como imprescindível, que era executada por barbeiros sangradores, nas suas tendas, nos domicílios dos pacientes, assim como nas prisões e hospitais.

A resistência em adotar teorias resultantes de estudos experimentais persistiu para além da Reforma Pombalina da Universidade, em 1772. A prática da sangria levaria ainda cerca de cem anos até deixar de ser prescrita por médios e cirurgiões.

O ofício de sangrador foi extinto por Lei de 13 de Julho de 1870. Até então, cumpria-se o adágio:

“Sangrai-o, purgai-o, e se morrer, enterrai-o”.


FONTE: Texto a itálico transcrito do Blog "Do Tempo da Outra Senhora", in www.dotempodaoutrasenhora@blogspot.com | BIBLIOGRAFIA: GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Vols. 4, 6, 17, 26. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.; NUNES LIAM, Duarte. Livro dos Regimentos dos Officiaes Mecanicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa (1572), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926; PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912; ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780; SANTOS, Georgina Silva. A Arte de Sangrar na Lisboa do Antigo Regime, in Tempo, nº 19. Rio de Janeiro, Julho de 2005.

domingo, 16 de abril de 2023

A propósito do culto e festa da Rainha Santa Mafalda

No ano passado completaram-se 230 anos sobre a beatificação da Rainha Santa Mafalda, confirmada por breve apostólico de 27 de Julho de 1792. No ano seguinte ao da beatificação, de 15 a 21 de Junho, depois de devidamente engalanado o Mosteiro, realizaram-se os majestosos festejos desse acontecimento, tendo por ponto alto a trasladação das relíquias da novel beata do túmulo de pedra em que repousavam para a imagem e urna relicário em que hoje se encontram.

Este acontecimento, embora decorrente do primeiro, não foi menos significativo que aquele, porquanto, tendo a beatificação demorado mais de cento cinquenta anos e ficado aquém do pretendido, os festejos e a colocação em exposição permanente e visível das relíquias ao nível das imagens dos demais Santos concretizava um desejo maior das religiosas e do povo que há muito haviam “canonizado” essa prodigiosa e virtuosa Senhora que escolheu o Mosteiro de Arouca para viver e nele ficar sepultado o seu sagrado corpo.

Com efeito, há muito que o povo ao título de Rainha lhe havia acrescentado o de Santa, tal era a tradição desta Senhora, em vida, ter praticado com devoção e religiosidade intensa todas as virtudes cristãs e, depois de morta, intercedido pela cura de múltiplas enfermidades e pela definição e resolução de diversas causas. Tudo tendo tomado contornos de maior verosimilhança e santidade a partir de 1616, quando algumas monjas procurando saber como estaria o corpo de Dona Mafalda abriram a sua urna e o acharam incorrupto e perfumado.

Daí em diante aumentou significativamente o seu culto, de tal forma que, em 1704, também a sua urna foi deslocada do local onde se encontrava desde que a mulinha ali havia trazido a tumba com o seu corpo, para altar provisório junto ao coro e, posteriormente, em 1718, para o altar onde se encontra atualmente.

Junto ao túmulo de pedra, que substituiu o primitivo de madeira, sobre o qual se fez repousar uma estátua jacente, sempre arderam lâmpadas de prata, durante todos os dias do ano, ali acorrendo diariamente as monjas e também imensos devotos, de ambos os sexos e todas as dignidades, manifestando culto público igual ao dos outros Santos.

Porquanto, levar a notícia e testemunho das graças desta Serva de Deus à Causa dos Santos e colocar as suas relíquias num túmulo e altar dignos da sua santidade, era o mínimo que se nos impunha perante o facto de uma predestinada aos palácios da realeza ter escolhido o nosso mosteiro para seu paço, ali estabelecer a sua fonte de graças celestes e dali subir aos Céus depois de nos confiar a guarda do seu corpo.

Porém, vistos estes últimos 230 anos, a beatificação foi (até hoje) o facto mais relevante da história da Rainha Santa Mafalda. E aquela sumptuosa comemoração acabou por ser o clímax da história do Mosteiro. Daí em diante, apesar da obra que se fez, este apenas conheceu o declínio do seu objeto e não mais se insistiu na canonização da sua bem-aventurada Benfeitora. Não mais se deu sequer testemunho e/ou tomou nota oficial dos milagres que eventualmente terá continuado a operar entre nós.

Estamos, pois, em falta para com a nossa Rainha Santa! A menos que se considere, consciente ou inconscientemente, que os milagres que operou entre nós aconteceram apenas em função e benefício do seu processo de santificação. Certamente que não. Não terá deixado a ditosa Senhora de obter para os seus devotos as graças que lhe rogam. E estas não serão hoje menores que naqueles outros tempos.

Disso mesmo nos deu testemunho ainda não há muitos anos o nosso conterrâneo Cónego Joaquim Mendes de Castro (1920-2016), em formato de livro – um pequeno grande livro que guardo entre os meus prediletos sobre a história e devoção de Santa Mafalda – e em cujas palavras de abertura relata a graça que ele próprio terá recebido por intercessão desta nossa e sua Santa protectora.

Os bem-aventurados não têm validade nem as graças divinas estão limitadas a qualquer stock. Mas dependem da perceção, testemunho, julgamento e divulgação dos fiéis, porquanto os santos só o são pelo reconhecimento dos outros.

Quanto à festa em sua honra, a autorização apostólica para veneração oficial da Rainha Santa decorreu daquele processo e, por isso, foi autorizada apenas no século XVII, depois da verificação e certificação da incorruptibilidade do seu corpo e das primeiras inquirições sobre o seu culto popular, pelo que só a partir de então terá começado a realizar-se também a sua festa, pelo aniversário do seu falecimento.

Mais antiga era já então a festa de São Bernardo, fundador de Cister, que tinha lugar no mês de Agosto, também a expensas do Mosteiro. Porém, depois de extintas as Ordens Religiosas e, nomeadamente, após o encerramento do cenóbio arouquense, a que também ajudou a proximidade das respetivas festas litúrgicas, a festa de São Bernardo foi substituída pela de São Bartolomeu. Associou-se-lhe depois uma componente em honra de Santa Mafalda e fizeram destas as popularmente designadas “Festas do Concelho”. A vertente profana destas acabou por prevalecer e, já em pleno século XX, acabaram por ser suplantadas pela Feira das Colheitas.

A festa da Rainha Santa, no entanto, resistiu à extinção do Mosteiro e aos intentos laicizantes. Quiseram mesmo os nossos maiores que o dia em que se assinala o falecimento de Dona Mafalda e em que continuou a realizar-se a sua festa prevalecesse sobre o dia em que os foreiros se viram livres dos pesados tributos ao Mosteiro, fazendo daquele também o dia do município e feriado municipal, o que muito beneficiou o seu culto e a sua festa, que ainda hoje se realiza e é bastante concorrida.

(publicado na edição do Roda Viva Jornal do mês de Abril)