sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Escravidão em Rossas

Correu grande indignação na freguesia de Rossas derivada da noticia do arrepiante aparecimento de um corpo ensopado e quase desfeito no fundo de um tonel donde se andava a beber o vinho.
Ao que tudo indica tratava-se do corpo de Virgolino, um escravo do Morgado de Terçoso, que desaparecera por altura do fim das vindimas de há quatro anos.
A tratar-se do corpo de Virgolino, faz sentido o facto deste, pouco antes de desaparecer, repetir, cada vez com mais insistência, tristeza e angústia, que: “aqueles que lhe comeram a carne, também lhe haveriam de chupar os ossos!”
Ao que consta, Virgolino vinha ameaçando colocar termo à vida desde a altura em que o seu senhor lhe negou a liberdade que lhe prometera se ele, seu escravo, conseguisse fazer chegar água corrente do rio à sua Casa de Terçoso, sita na encosta poente do vale de Rossas.
Por esta altura, a Casa de Terçoso era uma das maiores e mais abastadas casas do concelho de Arouca e, por isso, extensas as suas propriedades, que abrangiam toda aquela encosta entre as barrocas das Carvalheiras e Carvoeiro, e da dita Casa até ao rio Urtigosa. No entanto, apesar do Solar paisagísticamente belo e soalheiro, as terras do Morgadio estendiam-se em declive socalcado desde aquele até ao sopé da encosta, serpenteado pelo rio Urtigosa.
Dadas as características das ditas terras, forçados se tornavam os trabalhos de amanho das mesmas. Por outro lado, o escasseio de água provocava os maiores suores nos meses de Verão. O sol apenas dava sossego àquelas propriedades e aos que nelas trabalhavam, passada a hora da merenda.
Em razão disto, e talvez até mais fiado na relativa e aparente impossibilidade, o Morgado prometeu a liberdade a Virgolino, se este conseguisse fazer aí chegar água corrente do rio.
Sem perder muito tempo, Virgolino pôs a precária ferramenta de que dispunha às costas e fez-se a caminho de tal empreendimento.
Volvidas algumas semanas, qual não é o espanto da família e criados do Morgado ao ver surgir o escravo a rasgar um rego à volta das Carvalheiras, trazendo água corrente… Virgolino abriu um rego desde o ribeiro da Escaiba, ao fundo dos lameiros da Póvoa Reguenga, passando por cima do Torneiro, da Lomba e das Carvalheiras, até às terras do Morgadio. Pelo cimo de abruptas ravinas, donde a mais pequena pedra que se soltasse só parava no ribeiro, rompendo fragas e abatendo duros obstáculos, Virgolino conseguiu fazer chegar água corrente desde o ribeiro da Escaiba até Terçoso. A sua satisfação era tanta que, de imediato percorreu toda a extensão do rego, consertando a mais pequena ruptura e reforçando os bordos mais frágeis. Daí por diante nunca mais faltou água com fartura na Quinta de Terçoso!
Contudo, chegada a hora de pedir a prometida liberdade ou, pelo menos, um reconhecimento que lhe permitisse aliviar as costas de tamanhos ofícios; em vez de se lhe abrir a porta ou permitir endireitar o corpo, o escravo recebeu do seu senhor a maior das ingratidões: esperavam-no os trabalhos do costume, permanecendo como escravo, sem quaisquer direitos ou regalias.
Cansado, triste, desiludido, amargurado e desesperado, Virgolino apenas repetia, cada vez com mais frequência, que “os que lhe comeram a carne, também lhe haveriam de chupar os ossos!” No entanto, poucos ouvidos se deram aos delírios do pobre escravo.
No Outono seguinte, pelo fim das vindimas, Virgolino desapareceu!
 
Para que se recordasse e contasse esta estória se mandou fazer a carranca colocada no termo do rego, onde a água brota para fora dos muros da Casa de Terçoso.


Mas houve, algum dia, escravos em Rossas? Sim, houve. Não só em Rossas, como em Arouca e em todo o Reino português.

Os mais antigos registos paroquiais de Rossas, que remontam a 1682, possibilitam-nos constatar a ainda existência de escravos em Rossas, nomeadamente, nas propriedades dos irmãos António e Domingos Fernandes Ferreira.
Contrariamente à ideia que nos suscita a lenda ou estória de “Virgolino, o escravo da Casa de Terçoso”, de uma possível existência de escravos no Morgadio de Terçoso, nada se registou nos paroquiais de Rossas, conhecendo-se apenas, para além daquela estória, o caso de Antónia (b.20.VI1693), filha de Teresa, solteira, «escrava» de Francisca Teresa da Silva, de Terçoso, que lemos nos paroquiais da vizinha freguesia de Várzea.
Quanto aos demais, merecem a nossa maior atenção os casos isolados, mas significativos, existentes nos lugares da Cavada e da Vinha do Nega, reportados aos irmãos Fernandes Ferreira e seus descendentes.
Também Manuel Pinho de Carvalho, da Casa de Campo de Fora, tinha uma escrava de seu nome Maria, que teve Miguel (b.5.VI.1691).
António Fernandes Ferreira, da Cavada, tinha uma «escrava» de seu nome Luzia, que teve Francisco (b.27.VII.1692), de João, solteiro, sobrinho de Manuel Aranha, da Cavada; e Ana (b.10.IX.1697), de um «negro, escravo» de Domingos Fernandes Ferreira.
Mariana (f.15.II.1735), solteira, «mulher parda, escrava» de António Fernandes Ferreira, teve Dionísio (b.28.XII.1711).
António Pinheiro de Carvalho, da Casa de Campo de Fora, foi dado como pai de Manuel (b.28.I.1727), filho de Antónia, solteira, filha de «mulher preta», solteira, do lugar de Camguste.
Em 31 de Julho 1733, falece Antónia, dita «escrava» que o L.do Alexandre Ferreira Brandão, da Cavada, tinha no Corregato.
Domingos Fernandes Ferreira, da Vinha do Nega, lugar do Corregato, tinha uma «criada negra», «que hoje já não é escrava», de seu nome Maria, que teve Manuel (b.01.IX.1695). Também Maria foi o nome de outra escrava de Domingos Fernandes Ferreira, baptizada em 20.I.1702. Uma outra «escrava preta», de seu nome Maria, que vimos falecer um pouco mais abaixo do Corregato, na Vinha do Nega, em 30.XI.1708. Ainda outra sua «criada preta», solteira, que teve Tereza (b.16.IV.1723), de Teotónio, solteiro, filho de Teotónio de Vasconcelos Portugal Mendes e Cirne, Morgado de Terçoso.
Em Dezembro de 1770 deu-se o falecimento de Antónia, «escrava» do Capitão-mor Manuel Aranha Brandão.

A abolição da escravatura
por François-Auguste Biard (1798-1882)
Há precisamente 255 anos, em 12 de Fevereiro de 1761, Portugal tomou a dianteira na abolição da escravatura, pelas mãos do Marquês de Pombal, primeiro-ministro de D. José I.