sexta-feira, 15 de abril de 2022

A propósito das Procissões dos Fogaréus e do Enterro

Sai este número do Roda Viva quando estão a decorrer as solenidades da Semana Santa ou celebração litúrgica do Mistério Pascal, que consiste na paixão, morte e ressurreição de Cristo e, também assim, do Mistério do Calvário dum Cristo que sofreu e morreu, em sacrifício redentor, mas que ressuscitou, afirmando a vitória sobre a morte.

E, com efeito - é bom lembrá-lo - as tradições que por esta altura se recriam, com maior ou menor participação, radicam nesses acontecimentos, mas também na importância que os nossos antepassados lhe foram conferindo ao longo dos tempos, constituindo um legado material e imaterial, de fé, devoção, história e tradição, que ainda hoje irradia por cá uma intrínseca e incontornável ambiência pascal, como não se sente em muitas outras terras.

Por n’Ele ver o paradigma das suas dificuldades e sofrimento, é o Cristo da Paixão e do Calvário que mais atrai e motiva também o povo crente de Arouca. Razão pela qual também aqui se começou a promover o culto do Cristo sofredor. Dentro do Mosteiro, porém, esse culto remontava já, pelo menos, ao século XV, sendo ainda hoje possível observar no Museu, entre outras, um conjunto de tábuas pintadas, dedicadas aos diferentes momentos deste tema.

Extramuros, no entanto, como se sabe, tudo se terá começado a popularizar, essencialmente, a partir da primeira metade da centúria de seiscentos, altura em que se instituiu a Misericórdia, se construiu a respectiva capela, e se resolveu iniciar a recriação dos Santos Passos de Cristo num itinerário compreendido entre a capela e um austero maciço granítico reservado à representação do desenlace da tragédia que nos haveria de salvar, tal qual o percurso feito pelo Nosso Salvador entre o Pretório e o Calvário de Jerusalém.

Para esse efeito se organizaram desde logo alguns Irmãos sob a forma de Confraria, pese embora só em 1626 tenham resolvido firmar um termo, para nunca mais ser revogado, acerca da forma como devia ser feita a procissão quaresmal. E assim, de acordo com esse termo, a procissão deveria seguir o itinerário que ainda hoje se mantém, ao longo do qual se deveriam fixar e armar os respectivos Passos, mandando, desde logo, erigir também os primeiros cruzeiros do Calvário.

A Procissão dos Passos, com as componentes que lhe são próprias, começou então a realizar-se nessa forma e, tradicionalmente, havia nela lugar a três sermões: o do Pretório, ainda na capela da Misericórdia; o do Encontro, primeiro junto à (demolida) capela de São Gonçalo e, mais tarde, junto à capela de Santo António, onde aguardava o andor da Senhora das Dores; e o da Crucificação, já no púlpito do Calvário.

Porém, com o decorrer dos séculos, a procissão terá passado por algumas transformações e, por razões diversas, deixado até de se realizar por algumas ocasiões, sendo, no entanto, mais ou menos consensual na memória e escassa historiografia que, nos moldes tradicionais, se terá realizado até 1855, ano em que, alegadamente, terá sido substituída pela Procissão do Senhor Morto.

No entanto, para além de ser pouco provável essa substituição, aquela data não sinaliza sequer a altura em que terá começado a organizar-se a Procissão do Senhor Morto, também ela carregada do maior simbolismo. De resto, é muito provável que esta outra manifestação de religiosidade popular se realizasse já, pelo menos, desde meados do século anterior, por “incentivo” do Senhor Morto de Rossas, que, para esse efeito, vinha em procissão daquela freguesia para a vila, como se pode deduzir pelo Auto da Sessão da Câmara de 4 de Março de 1769, na qual foi requerido que se mandasse compor as poldras do rio para no dia seguinte vir a procissão do Senhor Morto daquela freguesia para a vila e que por isso mesmo também deviam estar os caminhos aparados e preparados e que, por honra de Deus, se dignassem acompanhar a mesma procissão com corpo de justiça de onde melhor lhes parecesse.

É, pois, muito provável que a Procissão dos Passos tenha deixado de se realizar durante alguns anos e se tenha mantido, no entanto, a organização da Procissão do Senhor Morto. De resto, em abono desta tese, se refere na edição de 21 de Abril de 1886 da revista O Occidente: «As cruzes meio derruídas, o púlpito desmantelado, as velhas oliveiras que circundam o calvário, tudo atesta os séculos que teem passado por sobre o monumento e com eles as crenças que teem esmorecido. Não sabemos se ainda hoje ali se celebram práticas religiosas, mas se se celebram, estamos certos que não serão mais que um longínquo reflexo das que se celebraram…».

Em todo o caso, faz essa publicação a justiça de afirmar: «O calvário de Arouca é, sem dúvida, dos mais notáveis que se levantaram pelo país, para celebrar ao vivo, permita-se-nos a phrase, a grande tragedia do Gogotha, em que se comsummou o maior dos sacrifícios, na pessoa do filho de Deus», presenteando-nos ainda com uma bela gravura desse nosso monumento, o único Calvário classificado a nível nacional como Imóvel de Interesse Público.

Não muitos anos depois, conta-nos a edição de 10 de Abril de 1909 do jornal Gazeta de Arouca que: «Na quinta-feira Santa e sexta-feira da Paixão foi grande a concorrência de fiéis em visita à egreja matriz e capellas da Misericordia e de Santo António, d’esta villa. Na quinta-feira, pelas 5 horas da tarde, houve sermão na mesma egreja pelo distincto orador sagrado rev.mo sr. padre Albino Moreira de Sousa e à noute sahiu da capella da Santa Casa da Misericórdia a antiga procissão dos Fogareos. Na sexta-feira realisou-se de tarde, com maior imponência e religiosidade, a procissão do Enterro, que sahiu da egreja do extincto convento. Antes e depois pregou o mesmo orador, produzindo, os seus primorosos discursos, excellente impressão na selecta e numerosíssima assistência.»

De então até hoje, pese embora mais um ou outro ano em que, por razões diversas, não se realizou uma ou outra, as antigas e tradicionais Procissões do Senhor dos Passos, agora dita dos Fogaréus, e do Senhor Morto, agora dita do Enterro, persistem. Um bem-haja e boa Páscoa a quem nelas persiste, pela fé, devoção, história ou tradição!

(publicado na edição do Roda Viva Jornal do mês de Abril)

domingo, 16 de janeiro de 2022

100 ANOS DE TEATRO EM ROSSAS

Casa da Barroca

Há precisamente 100 Anos, no dia d’ontem, mas na tarde d’hoje, porque o dia 15 de Janeiro de 1922 foi a um domingo, deu-se a estreia do Teatro na freguesia de Rossas. É uma data importante e digna de ser assinalada, pois enraizou uma tradição que ainda hoje se mantém muito viva e fulgurante.

Os primeiros atores organizaram-se sob o nome “Grupo Dramático de Rossas” e a estreia deu-se numa simples loja, no lugar da Barroca (na imagem), onde se improvisou um palco para o efeito. Foi então que pisaram o palco pela primeira vez, sob orientação e apresentação de António de Almeida Brandão, de Telarda, Joaquim de Pinho Brandão, do Paço, António Vicente da Silva, da Póvoa, Manuel Vicente da Silva, dos Carreiros, Manuel de Pinho Brandão, da Portela, Joaquim Brandão, do Matinho, e Maria Rocha, da Portela, estes dois últimos a interpretar duas cançonetas.

O grupo, no entanto, era ainda integrado por Celeste Garrido Brandão, da Portela, António de Pinho Santos, do Boucinho, Manuel da Costa Pinho, do Vale, e Maria de Pinho Magalhães, do Paço.

Nas palavras de António de Almeida Brandão, «eram todos dotados de muito mérito na arte de representar, como já se disse; mas Joaquim de Pinho Brandão distinguia-se dos demais, pelo facto de saber música, estando apto a ensaiar os números musicados, que sempre era costume meter em todas as récitas, tanto mais que as senhoras eram excelentes cantoras».

A estreia foi abrilhantada pela também novel “Tuna de Rossas”, integrada por Manuel de Almeida Aguiar, da Costa, António da Costa Brandão, da Cavada, António Francisco Martins, da Barroca, Joaquim Ferreira de Vasconcelos, da Vinha, Joaquim de Pinho Brandão, do Souto, e José de Pinho, da Comenda, sob regência de Manuel Brandão Martins, da Barroca.

Foi tal o sucesso que, pouco depois, pelo Domingo Gordo de Entrudo, seguiram para Castelo de Paiva, em carro de cavalos e a patrocínio do senhor Dr. Adelino Gomes Moreira, da Casa da Póvoa, freguesia de Tropeço, que, entretanto, se encontrava a residir naquele concelho. No dia 4 de Março de 1922, foi o grupo convidado a tomar parte no espetáculo que se realizou na vila de Arouca, no qual participou já quase todo o elenco.

Parabéns a todos quantos mantêm viva essa bela tradição!