terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Um recanto de Rossas nas representações oníricas de um renomado vulto da história nacional.

Um pérola literária, devidamente contextualizada, já incluída em Rossas - Inventário Natural, Patrimonial e Sociológico. É por estas e outras descobertas que não há pressa em publicar o trabalho. É muito mais gratificante a procura, a investigação, a colecção...

«Não sei que luta se passou no meu íntimo durante os primeiros dias. Não receava a morte, mas, olhando em redor, entristecia-me ter de abandonar a vida daquela maneira, perder, para sempre, o contacto com os que tanto me queriam.
Apesar disso, contradição das incertezas que se atropelavam no meu cérebro, também não desejava viver. Sofria muito. Ignorava as condições em que ficaria; se conseguiria continuar a trabalhar como até então. Poderia ainda ocupar-me de coisas científicas, dos meus trabalhos e até da edição alemã que trazíamos entre mãos?
Diante dos meus olhos tudo passava em filme rápido, com movimentações mais dramáticas do que agradáveis.
Logo que dormitava, sentia-me transportado a um pequeno recanto de quintal que tivera em Rossas, Arouca, onde a água da serra caía cantando num pequeno tanque de granito com bicas de descarga. Havia mais de 50 anos que poucas vezes me lembrara da pequena paisagem escondida sob uma latada, onde se viam uvas ainda mal maduras. A representação cénica era perfeita. E a água fresca feria na pedra canções silvestres, que não perturbavam a quietação do pitoresco quadro, entre campos verdejantes, em que os milheirais abundavam, e onde os «enforcados», emoldurando pequenos eidos, deixavam cair grinaldas de cachos, que princpiavam a tingir.
Acordava e logo desaparecia aquela representação onírica dum remoto passado; mas mal assomava uma sonolência, ligeira que fosse, imediatamente me transportava às longínquas paragens arouquesas, onde a água fria cantante me deliciava numa bucólica toada.
Estava sequioso. Mitigavam-me a secura da boca com pequenas gotas de água fria; mas a sede continuava e a penosa sensação, projectando-se no cérebro, ia despertar uma antiga reminiscência da infância. E não me afigurava a beber a água fresca e sadia da serra; contentava-me com a visão do repousante cenário e com a música do murmúrio da fonte.
E perguntava a mim próprio o motivo desta fixação na paisagem do pequeno recanto junto ao qual brinquei com meus irmãos há mais de sessenta anos e que já vai para meio século me não pertence!»

Egas Moniz, in Confidências de Um Investigador Científico, Edições Ática, 1949.

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