quarta-feira, 15 de março de 2006

ESTÓRIAS DA NOSSA HISTÓRIA - VII

As laranjas do Burgo
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Em determinada área do antigo concelho de Vila Meã, actual freguesia do Burgo, não há muitas laranjeiras e, as poucas que existem dão laranjas azedas. Segundo a tradição, o facto deve-se a um castigo dado por Dona Mafalda, e que nos chegou até hoje sob a forma de lenda.
A rapaziada de qualquer lugar e de todos os tempos, sempre gostou de brincar às guerras. Tão aproximadas do real quanto possível, estas não dispensam um bom confronto de granadas. Mas, como é natural, no lugar daquelas, torrões de terra, maçãs ou laranjas (consoante a época do ano a que se dá a contenda), são as coisas que melhor as assemelham.
Na zona do Burgo, a época preferida era a das laranjas. «No dia de S. Sebastião “O Mártir”, havia-as especiais e sempre esperadas, “pelo S. Sebastião laranja na mão”».
Das laranjas não corria boa fama, pois dizia-se "laranjas em Janeiro, dão que fazer ao coveiro", ou “manhã de oiro, de tarde prata e à noite mata”. Por isso, as laranjas ficavam no chão ou nas laranjeiras, à ordem da garotada, para lhes servirem de granadas, armas ou balas, nas tais guerras a que por brincadeira se dedicavam.
Na véspera do Mártir, São Sebastião, faziam-se provisões de tais laranjas, sendo consideradas melhores as rachadas ou as podres, pois ao acertarem em alguém deixavam sinal de si. Deitavam por terra o atingido, que não conseguia esconder que o foi… Morto, fora de jogo!
Em qualquer batalha, mesmo a brincar, como era o caso, eram necessários dois grupos de contendores, para se atacarem mutuamente. Para começar bastava que o mais atrevido atirasse, à sucapa, a primeira laranja ao parceiro, para todos correrem à procura de trincheiras ou barricadas, donde pudessem atirar laranjas sem serem atingidos por outros.
Aconteceu que, em certo ano pelo dia de S. Sebastião, no Mosteiro de Arouca, era aguardada a chegada do visitador-mor Dom Lourenço de Ataíde, com a sua corte e criadagem de serviço e apoio.
A aguardar essa visita, em frente à porta da Igreja do Mosteiro, estava o Juiz de Fora com os meirinhos, o padre-capelão, os confessores, o cirurgião, o tabelião de prazos, o Juiz da Irmandade das Almas, alguns irmãos de opa roxa e romeira branca, bem como muito povo.
Dentro do Mosteiro havia uma grande expectativa: algumas freiras espreitavam pelas grades quando uma saiu do arraial gritando: “Lá vem eles, lá vem eles…”. E, de facto, lá ao fundo do caminho, revelava-se uma onda negra com algumas manchas de vermelho vivo, em movimento…
Depressa a Irmã sineira correu à torre e lançou para o ar um repique festivo de aleluia. Lá fora, o arraial tomava posição e formava alas.
Cada vez mais próximo o grupo, destinguiam-se cinco componentes eclesiásticos, incluindo o venerando visitador-mor, montados em ricos cavalos; outros três, eram do pessoal de serviço fardado – barretina, casaca vermelha, calção azul, meia branca e sapatos, com três azémolas com carga – arcas e capas.
O séquito, à distância, era imponente, mas quando estacou em frente ao Mosteiro, mais parecia restos de um corpo de estado-maior, destroçado pela guerra, à procura de asilo e esconderijo.
O visitador-mor mais parecia um lázaro – a cara inchada, reluzente de liquido viscoso, os olhos congestionados e lacrimosos, poeira e sujidade de lama na vestimenta. As fardas coloridas dos serviçais traziam grandes manchas de humidade, grumos e lama. Nos outros sem se repara, pois que os olhares incidiam apenas sobre o pobre do visitador-mor. O povo, logo compreendeu o que se tinha passado e com as mãos escondidas, esboçavam sorrisos suspeitos.
Os visitadores entraram na igreja onde os aguardavam a mui Reverenda Dona Abadessa e todo o Mosteiro.
"Como Vossa Excelência Reverendíssima vem!”, atalhou a Soror Mafalda. Ao que respondeu o visitador-mor: ao passar pelo Burgo de Vila Meã, os criados que vinham atrás foram atacados à laranja, não se sabe por quem e quando eu recuei para os proteger com a minha autoridade, fui atingido na cara por laranjas podres, atiradas com força ao mesmo tempo que ouvia uma voz de menino: “Morto, fora de jogo!”
Ao ouvir a história e ver o estado em que eles vinham, Dona Mafalda, mandou esconjurar as laranjas do Burgo com a seguinte frase: “Eu vos esconjuro laranjas do Burgo”. A partir de então nunca mais as poucas laranjeiras existentes naquela localidade deram boas laranjas!
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Versão ligeiramente adaptada de um trabalho realizado pelos alunos da Escola EB-2.3 de Arouca. Há, pelos menos, mais duas versões. No entanto, pareceu-me bem acolher esta.

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