sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DE AROUCA - I

Um braço de Dona Mafalda por relíquia
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Corria o já longínquo ano de 1615 quando, para trasladar o corpo de Dona Mafalda e reunir provas da sua alegada santidade para juntar ao processo de beatificação (que, por força de vicissitudes várias, só viria a concretizar-se em 27 de Julho de 1792, por bula de Pio VI), se teve de proceder à abertura da sepultura onde se encontrava o seu corpo.
Para este efeito, foram chamados ao local, entre outros: como legado apostólico o bispo de Lamego, Dom Martim Afonso Mexia de Tovar (bispo de 1614 a 1615), e a Madre Violante de Moura Coutinha.
Em redor da sepultura onde repousava a dita Senhora, seis homens puseram o máximo das suas forças para conseguir remover a pedra que fora colocada sobre a mesma. E, neste processo, eis que se dá o infortúnio da referida pedra cair sobre um dos braços de um negro, servidor do Bispo.
Contudo, atenuado o sofrimento do criado, e redireccionando atenções, uma vez aberta a sepultura, para espanto dos presentes, encontraram o corpo de Dona Mafalda, intacto, incorrupto e odoroso, envolto num manto de tafetá pardo.
De imediato acorreram ao local as outras religiosas do Convento para presenciarem o facto.
Foi então que, perante tão miraculoso acontecimento, e «…fieis à crença de que os mortos continuam a frequentar os vivos», nenhum dos presentes se inibiu de tentar beber um pouco do santo destino a que Dona Mafalda fora entregue. Todas as maleitas e infortúnios tinham ali a sua cura.
Com estes intentos, e alheios ao significado do vocábulo «profanar», cortaram parte do manto que estava sobre o corpo de Dona Mafalda, e dividiram-no em pequenos pedaços que cada uma das freiras tomou como relíquia.
Mas, relíquia maior haveria de caber ao Bispo Dom Martim Afonso Mexia de Tovar, ou não fosse o seu "ius imperium" e o infortúnio que recaíra sobre o seu criado.
Abeirando-se do corpo de Dona Mafalda - qual Lei de Talião: olho por olho, dente por dente - o Bispo tirou-lhe um braço inteiro e levou-o consigo por relíquia, recebendo grande consolação pelo cheiro e suavidade que saía do corpo da dita Senhora Infanta.
Outras religiosas inquiridas, em 28 de Julho de 1649, não só confirmam o facto testemunhado pela própria Madre Violante, como afirmam que o braço se encontra agora (1649) no mosteiro de S. Roque, em Lisboa.

Parecendo insólita a estória, o facto é que «…se até meados do século VII a Igreja defendeu a intangibilidade dos corpos dos santos, depois houve uma extraordinária difusão das relíquias corporais, que a multiplicação de transferências de sepulturas encorajou e proporcionou…».
Contudo, e para descanço dos seus fiéis devotos, a imagem reconstituída para colocar na urna de ébamo e prata, que se encontra actualmente na igreja do Convento, embora à primeira vista não pareça, ostenta os dois braços.

(Estória inédita baseada nos depoimentos recolhidos em 28 de Junho de 1649, para o processo de canonização de Dona Mafalda. Cfr. “Arouca. Uma Terra, um Mosteiro, uma Santa” , Arouca 2005, de Maria Helena da Cruz Coelho. pág.45 ss.)
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Nota: esta é a primeira de 12 estórias que elaborei para publicar mensalmente no Jornal "Defesa de Arouca", durante o ano de 2006, mas que, não sei porquê, ainda não encontrei motivação para o fazer.
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